quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Lembrança.

(À minha tia-avó, mais avó que tia, Sylvia.)

Ao fechar o portão, os cachorros latiram fazendo Menina acordar. Acordou assustada pensando ser sexta, dia da semana, ainda dia de aula, consequentemente, pensava estar atrasada para a escola. Até que gostava, mesmo sendo dia de matemática.

Ao levantar e olhar o relógio viu que eram oito horas, o horário em que seu pai ia trabalhar, mas também percebeu que era sábado, e não sexta como imaginava ao susto.

Corre depressa para a cama, cobre-se com a colcha retalhada e tenta dormir novamente. Nisso, sua mãe, uma mulher morena, com cabelos grossos e presos com um lápis descascado, passa pelo corredor com seus tamancos, que assusta Menina, indo em direção à cozinha para fazer café e dar ao São Benedito, como fazia todos os dias, até mesmo finais de semana, feriados e afins, era sagrado.

Tão atordoada, Menina decide levantar. Com tanto barulho, de portão, cachorros e tamancos, era impossível continuar o descanso. Levantou-se, calçou os chinelos e foi ao encontro da mãe para compartilhar o café com o Santo.

- Bom dia!

- Eitá, já tão cedo, em pleno sábado, acordada?! Sabe que é sábado, não? Nunca te vi acordar sozinha nesse horário e no final de semana! Bom dia! – diz a mãe à Menina, entregando o café ao Santo.

Como estava atordoada, o mau-humor subiu-lhe à cabeça, Menina calou-se e colocou café com açúcar na caneca para tomar. Já estava quase frio, mas dava para engolir.

-Vamos à casa da Vó hoje? – arranca remela de um dos olhos e, continua – Queria conversar com ela.

- Ela já ligou, falando para ir almoçar lá hoje. Graças à Deus eu tiro a barriga do fogão hoje, pelo menos num sábado da vida. Mas, ô Menina, o que você, uma criança de 13 anos, quer falar com uma velha de setenta e lá quantos?

- É coisa minha, mãe! Deixa de ser fofoqueira e vá arrumar o que fazer, ora! E outra, eu sou adolescente já, não criança!

- Deus um dia te castiga pelo jeito que fala com tua mãe, Menina, ah castiga!

- Assim seja!



Em uma casa grande, de portão baixo, porta pequena, um carro bem velho na garagem e várias árvores frutíferas no fundo, chegam Menina e a mãe. Tocam a campainha, e a mãe aflita, carrega um vaso de flores pesado que estava jogado em sua casa e prometeu-lhe dar à Vó.

-Entrem, entrem!

O portão estava aberto, a mãe entrou ligeiramente, quase soltando os pulmões pela boca e reclamando que ninguém a ajudava. Menina correu e abraçou a Vó, como sempre fazia ao vê-la.

Como Menina era a única filha da mãe, e a mãe era a única filha da Vó, a família era pequena, o avô já havia falecido há anos, Menina nem chegou a conhecê-lo, mas não se importava, quem lhe importava mesmo era quem estava vivo e quem ela podia ver.



A mãe comprometeu-se em lavar a louça, nisso, Menina conversava com a Vó. Conversavam sobre infância e sobre relação avó e netos.

- Mas sabia, Menina, que os pais servem para educar e os avós para deseducar? – soltou uma gargalhada ao dizer à Menina, pois sabia bem que seu papel de avó ela cumpria corretamente.

Após a conversa foram colher frutos nas árvores. Colheram caqui, limões e laranjas, enquanto a mãe assistia ao jornal sangrento da tarde, que mostrava um massacre em uma favela paulistana.

A Vó arrumou a cesta de frutos e sentou-se perto da janela para ver as pessoas passarem.

- Vó, minha mãe pediu um caqui pra senhora! – pediu Menina aos pedidos da mãe.

- Ah, fale pra sua mãe que eu não vou subir no pé pra catar caqui hoje, tô muito cansada!

- Mas, Vó, a gente acabou de catar caqui, ta ali na cesta!

- Nós? Hoje? Agora?

- Sim, olha lá! – Menina assustou-se mais ainda com o esquecimento repentino da Vó, e apontou para a cesta.

- Nossa, preciso ver o Doutor. Que horror um esquecimento desses! – sorriu a Vó.



Menina, ao levar a fruta à mãe, ficou pensando, como podia a Vó esquecer de algo tão recente e lembrar, tão nitidamente das coisas do passado? Tentou entender por alguns instantes até ser interrompida pelo grito da mãe:

- Que horror!!! Jesus, Maria, José! Ta vendo, Menina? Ta vendo? Daqui a pouco você pode ta matando sua mãe que nem esses irmãos fizeram com os pais. Do jeito que você anda com essa boca, não duvido.

Esqueceu logo do esquecimento da Vó, e a Vó também já o havia esquecido.



Como não tinha amigos, Menina, já com dezenove anos, passava os dias ajudando a mãe em casa e as tardes pensava em salvar sua vida e sua solidão.

Não estudava, já terminara tudo. Ou dormia ou comia ou varria a casa, não gostava de fazer nada disso. Criou um desgosto temível por ela mesma.

Sua mãe começou a sair demais, havia noites que nem voltava, e o pai estava viajando a trabalho havia dois anos.

Tudo estava estranho ao seu redor, fazendo com que ela se tornasse mais estranha do que pensava.

Vó, com debilidades avançadas, necessitava de ajudas e Menina se prontificou a isso. Todas as manhãs ia até a casa da Vó, fazia café, dava à São Benedito, continuando com a crença familiar, e servia a Vó.

Com dificuldades de erguer a caneca até a boca, Menina o fazia com uma dedicação de neta.

Ao passar as horas, fazia o almoço. Sempre era uma papa, grudenta, nojenta e ingerível à quem está em sã consciência. Dava pra Vó na boca, com cuidado, aos poucos e com calma.

Anulava-se por completo para cuidar de seu único ente que lhe restava algum afeto. Vó envelhecia rapidamente, tão rapidamente que chegava a ser rápido demais para seu mundo.

Mas, tudo bem, mãe sumia e nem se preocupava e o pai abandonou-as dizendo ser em nome do trabalho. Menina não se importava mais, pois já estava crescida, sabia se virar sozinha, só quando se é criança, pequena e vista como uma “benção divina” é que se tem ao redor pessoas dizendo e jurando amores.

- Te amo, Vó – disse Menina, talvez sem nem entender o por quê, enfiando mais uma colherada na boca da Vó.

Correu-lhe uma lágrima, duas, três... Enxugou-as rapidamente, disfarçou, respirou fundo e mais uma colherada.

Menina estava tentando cumprir seu papel de neta, diferente do papel de mãe, que é de educar, tentava reeducar a Vó, difícil, pois a avó nunca havia lhe dito como era antes, quando conversavam sobre o passado.

2 comentários:

  1. Que triste. =(
    Mas ficou lindo o texto Nát...parabéns

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  2. É a vida tem dessas coisas ... faz parte!
    Adorei o texto.
    É seu?
    Beijos e beijos

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